Sem sigilo, sem Medicina

Sandra Franco* e Fábio Lima**

“Mesmo após a morte do doente respeitarei os segredos que me tiver confiado”. Essa é uma das promessas contidas em uma das versões do Juramento de Hipócrates, adotado por profissionais da saúde e que representam diretrizes éticas que sustentam o pilar da relação médico e paciente: o dever de sigilo.

No âmbito legal, há proteção do Estado ao direito de o cidadão decidir quem poderá conhecer certos aspectos de sua vida: o direito à intimidade e a vida privada. Assim, quando o paciente permite ao médico adentrar nesse campo, surge para o profissional um dever de inviolabilidade às informações que com ele foram compartilhadas, única e exclusivamente, em razão de sua profissão.

Nessa esfera da intimidade, quem tem ingerência é o dono das informações – ou assim deveria ser. Há garantia expressa a esse direito na Constituição Federal, no Código Penal, de Processo Penal, no Código Civil, de Processo Civil e no Código de Ética Médica, entre outros diplomas legais. Como regra, a legislação determina que somente a autorização expressa do paciente não trará prejuízo de qualquer ordem ao médico quando da quebra do sigilo.

Porém, existem previsões legais (exceções) que justificam e autorizam ao médico revelar o segredo que lhe foi confiado. Tratam-se das chamadas causas justificáveis.

O Estatuto da Criança e do Adolescente e a Portaria do Ministério da Saúde 1968/01, por exemplo, regulamentam a obrigatoriedade de serem comunicados ao Conselho Tutelar os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente, sob pena de incorrer em infração administrativa. No mesmo sentido, o Estatuto do Idoso prevê que todos têm o dever de comunicação de qualquer tipo de negligência, violência ou crueldade ao idoso e que os profissionais de saúde são obrigados a comunicar casos de suspeita ou confirmação de maus tratos aos órgãos competentes.

A Lei 6259/75 e a Portaria MS 1271/14, por outro lado, determinam que os profissionais de saúde devem comunicar à autoridade de saúde a ocorrência de suspeita ou confirmação de determinadas doenças, agravos ou eventos de saúde pública disciplinados na Lista Nacional de Notificação Compulsória. Assim, devem ser comunicados surtos, epidemias ou doenças que possam representar um dano significativo para a coletividade, bem como os danos à integridade física ou mental de um indivíduo provocado por abuso de drogas, violência, agressões interpessoais e maus tratos, entre outros.

Na área criminal, o art. 66, II, do Decreto-Lei 3688/41 disciplina os requisitos da contravenção penal de omissão na comunicação de crime pelo médico. Já o Código Penal, em seu art. 154, caracteriza como crime a revelação de um segredo que possa produzir dano a outrem, obtido pelo médico ou profissional de saúde em razão de sua profissão, caso não haja “justa causa” para tal quebra do sigilo. Nesta seara, aliás, o Código de Processo Penal proíbe os médicos de depor em juízo como testemunhas quanto a fatos acobertados pelo sigilo em razão de sua profissão, “salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho” (art. 207).

Não se pode olvidar que nenhum direito é absoluto. Muitas vezes, dois ou mais direitos se chocam, caracterizando um conflito aparente de normas, caso em que deve ser aplicado o princípio da proporcionalidade para prevalecer o de maior valor. Entre o direito à religião alegado pelos pais para impedir a transfusão de sangue de seu filho, por exemplo, sobrepõe-se o direito à vida deste, de maior valor – tornando-se ilegal a não transfusão, com consequências cíveis, administrativas e criminais ao médico e aos genitores.

O mesmo se dá com o direito do paciente ao sigilo, que também não é absoluto e muitas vezes pode se chocar com outros direitos constitucionais. Nessa esteira, ganhou notoriedade na mídia recente a notícia da mulher que foi denunciada à polícia pelo médico que a atendeu, quando ela buscou socorro em um hospital. A polêmica do aborto voltou, então, a frequentar a pauta de especialistas do Direito e da Medicina.

Um sofisma explicaria a atitude desse profissional de forma aparentemente lógica. Ora, o médico está obrigado a denunciar crimes. O aborto é crime. Conclusão lógica: o médico deve denunciar o aborto.

Ocorre que o médico não está obrigado a denunciar todos os tipos de crime. Segundo o artigo 66 da Lei das Contravenções Penais, somente há o ilícito caso ele deixe de comunicar um delito de ação pública incondicionada (os que são apurados independentemente da vontade da vítima) e desde que “a comunicação não exponha o cliente a procedimento criminal”. Não é demais dizer que, ao desrespeitar o sigilo da paciente que realizou o aborto, o médico expôs sua paciente a um processo-crime, tanto assim que a mulher foi detida pela polícia.

Muitos argumentam que é inadmissível que a mulher não seja punida ao cometer o crime de abortar. No entanto, não caberá ao médico esse ônus de fazer a justiça. Isso porque, ao contrário de colaborar para a justiça social, o profissional que quebra o sigilo da paciente para dar a notícia do crime de aborto acaba por desestimular outras mulheres em iguais condições a procurarem os serviços de saúde.

Ao médico é permitido alegar objeção de consciência quando não concorda com determinado procedimento por razões pessoais. Tal recusa, desde que haja outro profissional a atender, já deveria bastar ao profissional que é contra a prática do aborto, ou seja, o médico respeitaria a autonomia da mulher e estaria respeitando suas convicções.

O direito do paciente ao sigilo profissional deve ser observado e defendido para que a Medicina seja exercida com plenitude. Portanto, é louvável que os profissionais da saúde ajam sempre pelo princípio da beneficência, de forma a nunca trair a confiança o paciente, em observância aos direitos de personalidade, salvo se justificável legal e eticamente.

* Sandra Franco é consultora jurídica especializada em Direito médico e da saúde, presidente da Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico-Hospitalar da OAB de São José dos Campos (SP), presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde, membro do Comitê de Ética da UNESP para pesquisa em seres humanos e Doutoranda em Saúde Pública –[email protected]

** Fábio Lima é Promotor de Justiça e coordenador do Projeto sobre Drogas “Comarca Terapêutica” em São José dos Campos (SP)

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